“É com o andar da carroça que as melancias vão se
ajeitando”
É possível sustentar uma visão perspectivista do
conhecimento das ciências naturais. Existe um mundo de fato, com vários humanos
e matéria em reação; cada paradigma sob o qual se dá o trabalho da ciência
normal é uma das formas com a qual se tenta interpretar e descrever este mundo.
Mas é possível sustentar uma visão perspectivista para os
valores humanos? Bom, Belo e Justo são conceitos orientadores de nosso agir,
mas cada um de nós é dotado de uma interpretação do que há de Bom, Belo e Justo
na natureza?
Aqui, em coerência com a opinião sobre o perspectivismo
em relação ao conhecimento das ciências naturais, acredito ser possível
sustentar uma opinião relativista do conhecimento dos valores morais.
A interpretação e descrição dos fenômenos abordados pela
Física pode ser avaliada empiricamente. Embora possa haver diferentes modos de
interpretar os fenômenos depois da constatação empírica, ela é um juiz
incontestável para descartar teorias que não condizem com a verdade da
experiência humana –de modo que, caso alguém escreva uma teoria explicando
porque as bolas de boliche levantam voo nas terças-feiras, e nunca uma bola de
boliche levantar voo em uma terça feira, certamente a experiência empírica será
um critério indubitável para descartar esta teoria.
Isso funciona para o conhecimento dos fenômenos físicos
porque as conclusões da ciência física emergem de premissas que estão “no
mundo”, o sentido semântico dos conceitos utilizados nas teorias estão na
experiência do externo aos nossos sentidos.
Nós vemos cachorros, gatos, humanos, muros; podemos tocar
neles, cheirá-los, lambê-los e também ouvimos o som que eles emitem. A
interpretação da relação de nexo causal entre os objetos de uma ontologia
assumida para classificar a experiência é o produto da atividade cientifica.
Já os conceitos que usamos para denominar nossos
sentimentos, como: Vontade, Amor, Ódio e Raiva, são frutos de uma experiência
interna. Você jamais verá o Amor no mundo, é possível que veja o objeto ao qual
direciona e imprime o seu amor no mundo, mas nunca o Amor. Se visse o Amor no
mundo, você saberia dizer qual é a forma, a extensão e a cor do Amor e todos
poderiam concordar ou discordar.
Além dos sentimentos, o mesmo se estende para os juízos
de valor. Talvez haja uma ligação entre os sentimentos e os juízos de valor,
mas, para esta analise, o importante é que ninguém jamais viu o Bem andando de
mãos dados com o Belo, enquanto o Justo discutia com o Mal.
Venho tratando o conhecimento das ciências da natureza
sob uma ótica perspectivista porque, com a exceção de certos solipsistas
ingênuos ou dos mais geniais filósofos em suas meditações mais profundas,
ninguém ousará negar que existe um mundo e de que é dele que se trata as
interpretações das teorias das ciências naturais –embora ainda haja muita
discordância quanto ao caráter de verdade dessas teorias.
Já o conhecimento dos juízos de valor pode ser tratado
sob outra ótica, já que suas premissas advém da experiência interna ao sujeito.
Isso quer dizer que os juízos de valor, embora tenham o caráter de realidade
que só a experiência pode de fato conceber às nossas opiniões, podem suportar
qualquer tese absurda (como uma versão da bola de boliche voadora: é bom para
todos ser assassinado por um serial killer nas noites de terça –neste caso de
crença, um serial killer que pratica masoquismo, ao ver as expressões de dor e
sofrimento nos rostos de suas vítimas nas terças à noite, interpreta nestas
expressões o mesmo prazer que ele próprio sente em suas seções de masoquismo;
além disso, ele também acredita que o prazer real do homem seja sentir dor
física e que todas as pessoas do mundo sentem prazer com a dor, porém só suas
facadas nas noites de terça é que pode despertar a apreciação deste prazer na
alma delas. Óbvio que é uma tese absurda, mas para o caso deste serial killer,
ela é de fato real para ele e é impossível que qualquer argumento racional o
persuada do contrário).
Esta ótica assume uma visão relativística dos juízos de
valor: Você tem a experiência de conceber os conceitos de bondade, justiça e
beleza (entre tantos outros) em sua consciência, e mesmo que você não se
questione quanto a isso, assume uma posição quanto ao significado desses
valores todas as vezes que usa essas palavras; mas você, ao imprimir esses
conceitos morais nos dados que recebe de sentidos, faz com que eles sejam reais
para sua experiência dos próprios sentidos.
Se isso for verdadeiro, explica que, mesmo quando estamos
convictos da verdade de nosso conhecimento na discussão de um relacionamento
afetivo, é impossível provar para o outro –porque o outro também está convicto
da verdade. E a verdade de cada membro do casal é real em suas interpretações
daquilo que recebem de seus sentidos. Quantos casos de namoros antigos que
acabaram em brigas nas quais cada um julgavam-se tão cheio de razão quanto o
outro você conhece?
O grande problema desta visão relativística dos valores
morais é o fato de que, no exemplo de um casal de namorados, um dos membros
utilize não apenas as palavras “certo” e “amor”em seu discurso, mas também os
conceitos de Certo e Amor enquanto orientadores de seu agir, de forma distinta
da qual o outro membro se apropria destes mesmos conceitos. Com isso os membros
do casal podem assumir o mesmo compromisso ao aceitar a relação, mas possuir
diferentes exigências para a aplicação deste compromisso. Podem encontrar provas
de amor em atos que não tiveram aquela intenção. Podem brigar mesmo quando
defendem a mesma coisa... E podem achar que se odeiam, mesmo quando se amam.
Aceitar o perspectivismo do conhecimento cientifico não
traz absolutamente nenhum problema para a prática cientifica, a ciência normal
continua resolvendo quebra-cabeças. Já o relativismo epistêmico dos valores morais
não traz nada. Quem assume esta posição continua imprimindo esses conceitos
orientadores na experiência de seu agir e mesmo cético quanto a todos eles, sua
própria posição cética já é assumir uma posição quanto à qual é a melhor
teoria. Escolher a melhor é quantificar a Bondade e escolher a Bondade mais
boa. Neste sentido este relativismo necessariamente não conduz ninguém ao
niilismo, já que o próprio niilismo é interpretado por ele como uma forma de
conceituar o Bom, o Belo e o Justo no agir prático.
Esses conceitos orientadores do agir são necessariamente
incomensuráveis, o fato de se concordar ou não em relação a eles pode ser
comprovado apenas pragmaticamente. Uma pessoa pode apontar para um objeto
físico e dizer “Este objeto é um Armário” e a outra pode concordar ou não com
esta forma de uso do conceito. Mas ao contrário de Armário, o máximo que alguém
pode fazer quanto a conceitos como o Amor é apontar para dentro de si e dizer
“Isto que há aqui dentro de mim é o Amor”. Que conhecimento da forma com a qual
uma pessoa se apropria de um conceito você pode ter, quando este conceito
remete a algo mais que invisível, algo que só existe dentro da mente da própria
pessoa?
Os paradoxos que conceitos como o Amor geram no inicio de
um namoro só podem ser respondidos pragmaticamente, na medida em que as pessoas
se conhecem. Com a vivência de casal este paradoxo vai se resolvendo, mesmo que
o relacionamento dure até a morte o paradoxo não será totalmente resolvido, pois
a própria forma de usar um conceito passa por mutações que impossibilitam a
estabilidade deste conhecimento (essas mutações são bastante evidentes na
mudança que ocorre entre os períodos que chamamos de adolescência e vida
adulta). E mesmo que o relacionamento acabe devido a divergências no conceito
de Amor, o término do relacionamento não prova que uma das pessoas entendeu o
uso do conceito de amor da outra e não concordou com ele, prova apenas que, no
mínimo uma das partes entendeu a impossibilidade de entender o conceito de amor
da outra. Lembrando que este conhecimento da forma de uso do conceito de amor é
de ordem totalmente pragmática, pois é inefável, os membros de um antigo casal provam
que possuem esse conhecimento pelo valor pragmático de se conseguir viver
compartilhando estes conceitos.
Se só podemos embasar os nossos juízos de valor em si
mesmos, mesmo assim devemos lutar por eles? Sem dúvida o mais ético que alguém
pode ser para consigo mesmo é não agir segundo conceitos sendo apropriados de
maneira que discorde. Talvez desobediência civil seja o apogeu desta forma de
conhecimento.
John Lindemann